domingo, dezembro 17, 2006

Desistória

Quando você me acordava
Com os cabelos molhados
Quando dizia que era sono
E me recrutava a zelá-lo
Quando não sabia que era vista
E acarinhada minutos seguidos
Na noite
Quando ria de perder o riso
Quando espirrava de perder as forças
Nos pés
E arrojava um vermelhão no nariz
Como um alvo
Quando aparava as unhas em frente a TV
Quando me cheirava de surpresa
Quando me abraçava a si mesma
Quando inventava bugigangas de comida
Quando eram horríveis
E quando eram deliciosas
Quando esquecia das coisas
E quando me lembrava delas
Quando dançava ao me vencer
E nos ninava no cansaço
Quando pensava com as mãos no início do dia
Quando pensava demais e franzia os olhos verdes
Quando ligava com a voz embargada
Quando sub-metia os braços finos nos meus
Quando misturávamos as cores
Quando era da pele
Quando era da alma
Quando era da voz
Quando ouvia as mil histórias sem soluções
Quando eram sem pé nem cabeça
Quando eram lindas
Quando eram desistórias
Quando segurava o cansaço de um povo
Para escuta-las de todo
Mesmo quando não eram
Quando adivinhava sua fome
Quando brilhava os olhos, adiantando-os.
No futuro e trazendo-os firmes nas vontades presentes
Quando alugávamos filmes e você só queria ver um
Quando dormia no meio deles
Quando ria no meio deles
Quando estava ao meu lado, no meio deles.
Quando guerra era dos santos
Quando chegava de surpresa
Quando me deu flores
Quando me deu a si
Quando foi compreensiva com as minhas ignorâncias
Com os meus medos
Quando tentava me adivinhar no caos
Quando se esquecia na calma do domingo
Quando deixava ensiná-la sobre futebol americano
Quando pedia que eu adormecesse no seu colo
Quando queria companhia para ver aquelas séries horrorosas
E quando não via o prazer e a atenção com as quais
Eu as via
Quando me chamava
Quando me chamava de nomes eternos
Quando queria ser livre
Quando sempre foi livre
Quando planejava nossa vida
Quando relevava meus impulsos
Mesmo agora, quando não quer senti-los
Mesmo agora, quando não somos
Mesmo agora, quando não sonhos
Mesmo agora, quando sem trilhas
Sem eu sem você
Mesmo agora, quando éramos
Quando o dia inteiro
É quando eu lembro
Quando havia amor
Quando havia você
Quando eu a amo
Quando nós
Quando a saudade traz o passado
Inteiro, sem cortes
Ou esquecimentos
Quando ele está dentro
Mais dentro que o homem
Quando assim
Assim mesmo
Quero dizer tanta coisa
E digo sem dizer
Pra não dizer quando
For a hora fora
De quando agora
Eu a amo
Desde quando
Somos.

sábado, dezembro 09, 2006

Vida da infância no mato de Paraíba do Sul com a namoradinha que perdi

Lembrei outro dia
Lembra?

Da velha e azul e tanta
bicicleta que caí

Do cheiro fácil
E morno
Que nos fez sorrir

Da solidão imensa
Que criou um homem
Em mim

Lembrei outro dia
Lembra?

Da figura quixotesca
Do mendigo
Demerval

Da doçura quase morta
De uma roupa no
Varal

Do pesado anoitecer
Que escondia o amor
E o mal

Lembrei outro dia

(Lembra)
Que a vida não valia

(Lembra)
Que tudo nos podia

(Lembra)
Que a morte permitia

A paz.

quinta-feira, novembro 30, 2006

Entre cinco e vinte

Estou entre a dor de um dia manso
Na tarde suspensa tão alta que evita a noite
Confabulando versões de meu passado
Em busca de uma definição para as coisas de escritório
Invertendo constantemente as prioridades da vida
Dando vez ao que não sei para que aconteça agora
Entre ligar para o plano de saúde
Entre dizer a ela que sinto falta de tudo
Entre a procura de um novo apartamento
Que não sei como vou pagar nem porquê
Tentanto enteder conceitos de multidão, capitalismo
E morte
Sabendo do término de um namoro caótico e inspirador
Querendo palavras, custando palavras
Com vontade de ligar para o judeu
Equilibrando o desejo de sumir com o de dormir ou fugir,
que na verdade são a mesma coisa e revelam tudo
exceto o que é que tenho que fazer pra resolver a morte
Entre as dívidas do banco
E a vontade de amar novamente
Entre a puta pressão que dá ao escrever
E malha fria que é tentar poesias

Estou entre o Indizível
(um dia falarei sobre ele)
E o gosto bom de um café na boca
Que ainda lembra que o dizer , às vezes,
é real.

sábado, novembro 18, 2006

Música para Ana Carolina

Não tenho vontade de acordar
Mas à noite, quando tudo quieta
Nem penso na tristeza de dormir

Tenho pavor de falar
Ao telefone, prefiro as cobertas
Me Abrigo e me forço a desistir

Não quero cobrar
Dos outros as atitudes certas
Nem qualquer forma de agir

Não gosto de atravessar
A rua dos carros alertas
Que esperam a hora de rugir

Pra mim
O que vale é um casulo
A eternidade eu anulo
Na dor mais secreta

Pra mim
O que sei é um pulo
Pra dentro do muro
De uma alma aberta

sábado, novembro 04, 2006

Despessoa

Não
Sei bem
Se nunca serei alguém

Sei da falta
Que me faz uma obra

Sei no fim
Que sempre esquecerei de mim

Não, e agora
Enquanto acaba essa hora?
Esse sol, esses espinhos
Esse ódio que odiamos

Deixe-me ser
O que sempre
Poderei ser!

Ter, do verbo hoje

Hoje eu tive sombra
Tive riso de alguém
Tive pingo de chuva que não saiu
Tive passos
Tive pulos
E uma tristeza dócil

Hoje eu tive cadarços
Tive ar demais
Tive um sol acima
Tive Caetano pessoalmente
Tive trem
E um amor febril

Hoje eu tive louças
Tive água
Tive intuição
Tive um abraço fino
Tive canto ao longe
E um chupão

Hoje eu tive dor de dente
Tive paz às vezes
Tive sonho
Tive escada
Tive esperança
E tive pão

Hoje tive muito
Tanta coisa hoje
Fui rica e cheia
E saciei tantas fomes
de ter

Tive a mim
E ao mundo
E agora só preciso de um dia
Preciso do quê?

quinta-feira, agosto 03, 2006

A revolução do bicho

Outro dia veio um
E disse que sofrimento
É pra quem quer

Que é coisa de mulher

- Mulher, bicho fraco!
- Mulher, bicho estranho!

Aí um outro ouviu
E gritou mais em seus pulmões
Que chorar só gasta o rosto

- Mulher, bicho fraco!
- Mulher, bicho estranho!

Quem não se contentou
Foi um outro
Que disse ter abandonado tantas
Quanto lhe podia contar as horas vividas

- Mulher, bicho usável!
- Mulher, bicho nosso!

Então a multidão
Contava histórias
De tristeza , sorrindo a desgraça
Feminina

- Mulher, bicho feio!
- Mulher, bicho preso!

Em uníssono cantaram
E beberam
E fuderam uns aos outros
Porque de nada mais precisavam
Porque o homem nada mais precisa
Do que a si mesmo
E esqueceram a expiação
A culpa
E se sentiram livres
E pegaram viola
E açoitaram um cão
E penduraram as camisas
E dormiram em valsa
Roncaram as almas
E anoiteceran um silencioso sermão

- Mulher, quem é bicho?
- Que bicho , mulher-bicho?

Sonharam sem sentido
E acordaram sem saber
E viram um bicho estranho
correr no peito de cada um

Tinha um cheiro bom
Um hálito calmo
E a viram chorando
Coisa que nunca viram
E viram que a dor dói mesmo
E que não passa nunca, mesmo quando passa
E que o mundo melhor é o que poderia ter sido
E que o bicho é estranho mesmo sendo humano
Mesmo sendo amor
Mesmo na saudade
E enfim no desapego

- Mulher, bicho homem!
- Nem bicho tem sossego!

segunda-feira, julho 31, 2006

Quem disse?

Quem disse que isso é coisa de mulher?

Quando o homem não entende
A desistência obstinada e lenta

Quando o mundo não entende
Que sou inalcançável e simples

Quando o peito não entende
O que ele quer

Quem disse que isso é coisa de mulher?

Quando sei viver sozinha e morrer só
Quando o espaço quem ocupa é quem saiu

Quando tudo o que amei foi o que não quis
Quando o tempo todo eu fui o que ele é

Quem disse mesmo que isso é coisa de mulher?

Quando choro feito homem envelhecido
Sem as pernas e o gosto eterno e bom de tudo

Quando toda eternidade é um ruído
E o amor não foi meu um dia
Sequer

Quem disse agora que isso é coisa de mulher?

Quem disse foi o mesmo que ocultou
Quem disse foi aquele que me deu

Um dia a esperança de saber
O que toda mulher cansa de saber

E no que ela acredita sem ter fé.

segunda-feira, julho 24, 2006

Perda

Perder alguém
É como uma poesia afiada
E lida, relida
Transcrita no pêlo

É como metáfora
Errada, insone,
Sem sentido
E única de uma palavra
única que nem tem a que
Se comparar

É um assoalho de si mesmo
Reações alérgicas por nada
Um envenenamento seu
Ao mundo

É uma cortesia cara demais
Uma antítese sem síntese
Sem tese

É reza
Que Deus reza
Pro Deus dele
E que o Deus dele
Conta de dormir
Pros filhos

É inconcebível
O parto de algo que morre
Trilhos
Perpendiculares
Que se aturam
E seguem

Porque a perda
Traz o retrato do que vem

Sem luz,
Sem pose
Nem ninguém.

quarta-feira, maio 31, 2006

Lista de Final do dia


Zumbi, Gandhi, Che Guevara, Madre Tereza. Odeio listas. Adoro listas. Tentei organizar o pensamento para definir quais seriam as maiores personalidades da história pra mim. Não queria artistas, gênios da ciência, nem mulheres gostosas. Não valia meu pai nem minha mãe. Nem meu finado cachorro Thor, com o qual aprendi muita coisa. Parece besteira, coisa de mulherzinha, mas cão ensina. É só saber latir igual a ele.

Almirante Negro, Robin Hood, Jesus Cristo, Mandela. Tinha que ser gente que abdicou das vontades pessoais para algo coletivo. Aquela galera que acordava cedo, no frio e gritava um "filho da puta! tá cedo pracaralho, puta q ô pariu. mas vamos lá, não tem jeito". Que tratava a inevitabilidade da luta com a complascência de quem reclama ,de sacanagem, só por não acreditar na própria grandeza.

Mv Bill, Zilda Arns, meus pais (droga!). Aqueles cansados , mas que puxavam ar de algum lugar. Aqueles com fome, mas que preferiam repartir. Aqueles que poderiam beber um drink bom numa praia foda, mas que ralavam o pé em buracos e estradelas do cú do Judas.

E tinham que ter mobilizado muita gente. Criado seguidores, repetidores da bondade, da igualdade e da abnegação. Aqueles que pensavam , mesmo não conhecendo, na Laranja Mecânica. Todo mundo correndo pra que ninguém corra tanto assim. Aqueles que no momento crítico, continuavam. Nos conselhos da mamãe de se agasalhar, corriam na chuva, debaixo das porradas de policiais, soldados, povo, o carrasco que fosse.

Tinham que ter tido coragem. Insanidade. Arte. Engenho. Pica Grossa.

José, João, Elisa. Tinham que ter acordado todo dia pra ralar horas e horas. Tinham que ter sido gente. A gente. Tinham que ter sofrido calado pra não desequilibrar a estrutura social. E , com fome, descansar no peito cinco filhos famintos. E , na própria ignorância, saber continuar vivos. Tinham que ter compreendido no amor, a putaria da vingança. Tinham que ter enxergado os pés no escuro dos becos. Tinham que ter visto a própria casa baleada várias vezes e continuar pintando a parede. sua ou dos outros. Tinham que não ter tido nada e ajudado o outro a continuar tendo tudo. Tinham que ser comuns, pouco charmosos. Na verdade uns tiozões barrigudos e fedorentos. Mas muito honestos e respeitadores. Tinham que se emocionar com músicas ruins e cantar nos videokês se sentindo o alguém que realmente eram.

Tinham que ter seguido as instruções das grandes personalidades da humanidade , vivendo-a, mesmo na mais completa e injusta adversidade. Tinha que modificá-la, errá-la, pulsá-la no cotidiano. Tinham que percorrer o que aquela galera percorreu, só que por mais de setenta anos e por mais de cinco gerações. Tinham que ter sido heróis, fora de qualquer lista imbecil de um intelectualóide qualquer que acha que sabe da vida.

Tinham que ter validado todos os critérios da tolerância possível, preenchido os formulários do INSS e segurado a vontade de chorar no trem, quando percebidos como nada nem ninguém pelos outros e por si mesmos.

sábado, maio 06, 2006

Uma vez Branco, outra vez Negro

Eu pensei
Que o negro era negro a todo branco
E lutei
Pra que o branco visse negro o que era negro
Mas cansei
Porque branco só vê branco onde é negro
E vê negro, mesmo branco, quando nada há de negro.

Eu chorei
Feito negro, todo branco, ao ver branco.
E vi branco,
Todo negro, mas o negro não viu branco.

E era negro e era branco
E eram brancos a ver negro
E eu fui branco, mesmo negro,
Todo negro e Todo branco

Quem fala negro, fala branco
E todo branco quer ser negro
E todo negro vai ser branco
Mesmo que o negro seja negro
Mesmo que o branco seja branco
Mesmo assim há que saber então
O negro e o branco
O branco e o negro
Negro e Branco
Branco e Negro
São.

quarta-feira, abril 05, 2006

Favela prêt-à-porter

A favela é permanente. Falar dela é uma atividade sazonal. Quase uma moda. Cheia de tendências reais, na maioria das vezes sérias e de reflexos concretos na vida das pessoas. É preciso que haja tiro no asfalto, Falcões incomodando o Domingo nosso de cada dia, mortes nos bairros nobres, blitz falsas na Petit Europe da Zona Sul, cheiro de merda na sola dos sapatos. Aí vira tendência, como uma cor. Agora falaremos azul. Entenderemos, como ninguém, de azul.
No início elogiam os tecidos, as estampas, genializam o gênio, que não precisava disso. Sorriem pra fora e pra dentro. É uma descoberta feliz aprender como se costura, como se tecem as idéias e as combina com desenhos. Todos sabiam que a moda existia, mas passam a saber, na pele, que ela existe.

Os olhos se acostumam com o que é mostrado. Adquirem o mínimo conhecimento, pelo menos para realizar comparações, bem simplificadas, entre dois estilistas e criar metáforas bem-sacadas com a vida. “Dior já foi mais assim...ou assado”, “hahaa, ficou com cara de Versace!”. É como criança aprendendo a infinitude das combinações semânticas. Da ilusão do domínio sobre o que pouco aprendeu, a sensação de segurança e auto-estima elevada oferecidas pelo chão bem pisado. Olham para as próprias roupas e cegam-se diante do buraco que existe entre o que vestem, o que podem produzir pra vestir, e , principalmente, por não suportarem as escolhas da roupa para aquele dia. Perdem-se, tragicamente, na tarefa mais simples: a decisão.
Mas só vive quem mente. Só passa quem cola. Quem não rouba não cresce. Agora arrotam pitacos nas roupas dos outros e ficam à espera de um vacilo qualquer do estilista. Este, genializado no início, figura-se humanamente. Por ser incompreensível, foi tão estudado que passou a ser íntimo. E intimidade é uma merda. Todo mundo acha que é pai da criança. Mais; que é padrasto e pode bater no filho que não criou.

Sobre favela fala quem quer. Fala que não tem juízo. Principalmente quem já fala demais. Jornalistas criados no mais alto grau de elitismo, cercado e sombreado, desde sempre, pelas idéias sociocêntricas, criados pelo “big brother” burro do poder que culmina na vantagem cultural, geográfica, social, física, intelectual e moral. São pirralhos abusados que nasceram para perpetuar o abuso.

Vestiram a camisa da favela. Tecem comentários e análises sobre o que sabem dela. Costuram fios soltos e criam uma roupagem que acham que faz sentido. Reinventam a moda de falar sobre o assunto. Mas, infelizmente, não costuram.

Bravejam a violência urbana, mas esquecem-se que na maioria das favelas chega primeiro e de forma muito mais cruel. Analisam a violência urbana, mas não percebem que ela é mais que tiros e armas. Como falar de algo que não sofrem:: postulam teses e apontam os “erros” de quem realiza algo por alguém, coisas que nunca realizam , que conjecturam sempre à mesa do bar. Quase nunca nas ruas. Nunca depois do túnel ou perto da linha do trem. Repetem de forma invariavelmente ignorante, estigmas e preconceitos que cabem aos dois piores tipos de pensadores: os que falam, informam e formam sobre o que não conhecem e os que não pensam o próprio discurso. São esses dois, ao mesmo tempo.

São aqueles com cara de conteúdo na primeira fileira do desfile. A paisagem pobre. Os bobos da corte invertidos. Os palhaços na platéia. Os desprovidos de mãos, lápis e vontade concreta para desenhar uma roupa.

Bobagem minha: a "inteliggentsia" é fashion.

sexta-feira, março 10, 2006

Casa de Cultura de Alguém pra Ninguém

"Uma estante cheia de livros não tem ação. Não modificam nada". Foi o que pensei bêbado, quando cheguei naquele apartamento. Lindo, charmoso, extremamente cuidado, num zona nobre de uma zona nobre do Rio de Janeiro. Tocava Caetano. Um Caetano bem roots, um disco que adorava, só de marchinhas de Carnaval. Foi feito numa época louca, de muito movimento, político e artístico, contestação, o auge da juventude que fazia o mundo. Não o ideal de juventude que faz o mundo de hoje. O passeio da vista continuou pelo cheiro. Incenso que nunca senti, coisa de gente espiritualizada e que já visitou a índia. O fino da bossa. Carrancas, palhas, pirâmides e uma televisão gigante de tela plana, do preço de uma vida minha de trabalho. Estava na utópica relação entre a alma e a tecnologia. O dinheiro e o modo justo de usá-lo. Perfeito se todas as casas no brasil fossem assim.

"O problema é que não são". Foi o que me escapuliu e pensei de novo. Penso demais às vezes. A dona da casa tinha buscado uns biscoitos, umas cervejas e um baseado no quarto. Meu amigo havia esquecido. Não fumo mais. A varanda era ótima, dava pra ver, deitado no futton, um produto da arte camponesa e pobre do Japão, datado de milhares de anos, o Cristo Redentor. Acho que sempre dá pra ver o Cristo Redentor de lugares abençoados financeiramente por ele. Do porão é que não dá. Tinha uma rede. E enfim fui olhar os livros com atenção. Fiquei impressionado. Havia muitos, o curso completo de sociologia, literatura e estudo dos movimentos sociais. Alguns falavam de negros, outros de índios. Tijolos de arte. Clássicos indispensáveis para qualquer elite intelectual que se respeite. A dona da casa sabia tudo de pobres.

"Nossa, Nelson Cavaquinho!". Lá vou eu pensando novamente. Era um vinil do homem. Que cantava mangueiras e subia morro cantando. O negão com cabelo branco estranho tinha que tocar e completar aquele kibutz pobre e alternativo cultural.

E foi ouvindo o Nelson que ouvi a dona da casa contando de suas peripécias num sítio no interior do Rio. Lugar pobre, mas tranquilo. Pra quem busca tranquilidade. Também entrei na conversa de áreas vips que a menina aproveitou e que aproveitaria. Assim como viagens a Europa, festas de aniversário futuras com dois djs num só espaço e sobre a felicidade de estar apaixonada.

O Brasil está bem nas mãos dessa elite. É sempre bom dormir de barriga cheia.

sexta-feira, março 03, 2006

Música Clássica

Gosto de música clássica. Ainda mais quando não tenho muito o que fazer. Sempre penso que é perfeita porque compoe um cenário, uma vontade. Se estou com sono ela me nana, se tô puto, ela me enfurece, vêm aqueles violinos e mandam ver. Melhor que guitarra. Levanto do sofá, coço o saco. Sempre coço o saco. Vou na geladeira e fico na frente dela o tempo suficiente para sentir frio. Pego uma maçã. Não, maçã prende. Faço um guaraná. Pego um biscoito na dispensa. Ligo a televisão pra rivalizar com a música clássica. Assim penso melhor. Abro o jornal e vejo o nome dela. É verdade, escreve muito bem. Todos aplaudem, menos ela. Já era de se esperar. Conhecida pela rabugentice. Pensava até que poderia ser falta de homem. Mas vejo que é uma senhora bonita, elegante e até jeitosinha. Pro meu tio mais velho. Nada de se jogar fora. Não tenho muitos motivos para matá-la. Sempre foi honesta e coerente em suas críticas teatrais. Não gosta de aparecer muito e me parece, apesar do texto feroz, uma boa pessoa. No entanto, preciso ter estratégia. E minha estratégia é causar medo nessa eltizinha intelectual que não serve pra nada. Criticas de teatro não servem pra muita coisa. E ela é famosa, muitos desejariam acabar com sua vida. Forma ingênua de dizer e expor o ódio que o ego sente quando é contrariado. Muitos do que ainda matarei se sentirão aliviados. Artista é foda. Mas o medo vem, mesmo com a mais recôndita satisfação. Ele vem na frente. Vê que não foi a megera quem morreu e sim que um conhecido editor de cultura o fez antes dela. E sim, poderei ser o próximo. É o ínicio da neurose. Um serial-killer à solta. Ouvi dizer que se tratam de homens inteligentes, geralmente bem relacionados, e que acharm estar certos em suas decisões. Minha diferença em relação a eles é que sei a medida exata da minha loucura. Acho muito doido tudo isso. Além disso não tenho muito prazer. É ódio mesmo. Penso, medito, planejo, mas no fundo sou movido pela raiva. Aos poucos verão que só quem merece é que cai. Quem matará essa mulher, serão as próprias pessoas que desejo matar.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Primeiro Crime

Joguei água na cara pra ter certeza de estar desperto. Não poderia falhar. A faca mata bem, mas precisa ser bem enfiada. Um golpe na barriga, rodar, apoiar o corpo com a outra mão para que não saia do esquadro do ato. Tirei a camisa social jeans que usava abotoada. Fiquei apenas com a preta que estava por baixo, caso espirrasse sangue. Ao sair colocaria novamente a blusa jeans. Sairia assobiando. Ouvi o barulho da descarga. Do zíper. Senti o cheiro doce de um perfume caro feito pra se fuder com uma mulher. Ele não me conhecia. Aliás não conhecia ninguém que não fosse de seu interesse. E, mesmo que tivesse me visto, sou um homem comum, não tenho dinheiro nem poder. Até agora. Olhei-o de lado. Teria que ser rápido. Não tranquei a porta. Era um café movimentado, mas de amenidades. Vinham, iam, liam, sorriam e iam embora. Passadas curtas no banheiro. Os atendentes eram discretos e não marcavam o rosto de ninguém. Sempre frequentei ali. Não desconfiariam. Não tramei nada. Entendi a consequencia de ver o babaca frequentar o mesmo lugar que eu. Não aproveitar o fato seria estupidez. Segurei-o pelo ombro. Sem barulho . Nada maior que o burburinho da fofoca e das fumaças das chaleiras. Pensei até que era um ótimo lugar pra morrer e pra matar. Fineza pura. Balbuciei qualquer coisa. Mirei a porta, senti até um pequeno nervoso. Mas pensei no serviço que prestava. Menos um escroto no mundo. Mais dinheiro repartido. Vai, nessas horas você imagina qualquer merda. Dei no estômago, rodei. Olhei novamente pra porta já arrastando-o para um dos reservados. Pelo impulso cravei mais um no coração, virei-o e o definitivo nas costas. Não precisava de tanto, perdi tempo. Guardei-o, deixei as pernas em simetria para dar a impressão de que cagava. Lavei as mãos, pedi uma refeição. Quiche de queijo e cebola com salada mais um mate com limão. Comi com calma. Mulher sempre demora. O garçom indicou a mesa em que o homem estava. Ela viu metade de uma torta comida. Disseram que estava no banheiro. Devia estar passando mal. Pedi a conta e a vi sorridente, ajeitando os cabelos no espelhinho do estojo de maquiagem.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

RELATO DE UM ASSASSÍNIO (Série de Assassinatos - I)

Não agüento mais esse mundinho de hoje. Sou um peixe fora d’água. De qualquer água. Se pudesse resumir a sociedade brasileira, do início do século XXI, em uma só palavra, diria: desencaixe. Nada combina, é um desencontro permanente. Mesmo com gente de uma mesma tribo, de um mesmo jeito, da mesma rua, comendo as mesmas mulheres, bebendo as mesmas cervejas, nos mesmos bares, com os mesmos erros, nas mesmas horas. Parece que nada se conecta a nada. O Brasil é uma pocilga cheio de gente boa, que, pela bondade, não modifica nada a tempo hábil e , pelo mesmo sentimento, se enche de culpa e cansaço. Temos as celebridades, que aparecem. Nada sabem, nada entendem, nada modificam. Ajudam no quadro desgraçado de tudo permanecer como está. Não inspiram. Deviam inspirar, como ídolos passados. Mas tudo que fazem é estabelecer a programação do dia. Temos a elite da grana. Que compra. Fornecedora do tipo mais feroz de ilusão: o consumo. E o consumo é estúpido, imobiliza. Essa gentinha é asquerosa, mas ignorante. Dos que eu tenho raiva estão aqui, do meu lado nesse Café. Um dos que mais odeio gosta de mate puro e forte com coca. Diz que é pra se manter acordado, é um jornalista ocupado, não tem tempo, mas precisa fazê-lo girar com as notícias, dar a impressão de que tudo passa rápido. Precisa enganar. São eles que me causam azia, queimação e má digestão. São os senhores da mídia, da imagem, os que produzem e reproduzem, que se acham com o reinado na barriga e fazem da informação penduricalho do ego. Jornalistas, escritores, pintores, poetas e compositores que se vestem para significar, que significam para vestir, para fazer parte e desfazer ao mesmo tempo. Os que são blazé até no perfume. Intocáveis, intangíveis e tão merdinhas quanto qualquer um. Vou falar mais deles a medida em que os for matando. Porque é por isso que estou aqui. São quatro horas da tarde, é Leblon, é mormaço, já tomei duas águas sem gás e uma neosaldina. Vou esperá-lo ir ao banheiro. Está esperando uma fonte, uma mulherzinha que deve estar comendo e que trabalha em alguma assessoria de alguns artistas famosos. Ele é editor da parte de cultura do maior jornal do Rio. Fala manso, é arrogante, já mandou muito conhecido meu embora só por não participarem da sua rodinha de maconha, cachaça em Santa Teresa, reuniões regadas a muita mutreta nos grandes apês de São Conrado e fudeções interessadas nos motéis sujos do centro. É conhecido, grande no meio, cresceu na base da delação e do puxa-saquismo. Além disso eu acho que é viado e ainda não sabe. Está com um arzinho infame, caga para a realidade brasileira e só quer saber de status, que vem junto com grana, que vem junto com ele. Vou precisar eliminar uma peça para que esse quebra-cabeça faça sentido para o mundo. É uma missão. Está na hora de alguma coisa encaixar na cabeça das pessoas.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

O Homem Pifa

São 15:12. Estou no trabalho. Bandido. Assaltante das horas, destinadas a mim para acabar com elas. Transformá-las em coisas, ações, consequências, idéias, teorias, achados, marcas, palavras, convencimentos, aparência. Aparentemente todos estão calmos. São 14 pessoas num espaço de mais ou menos 50 metrosquadrados. Se ocupam talvez. Estou aqui forçado. Hoje de manhã, lá por aquelas horas de tranquilidade, quando surpreendentemente acordei cedo, disse rm voz alta que trabalho é perda de tempo. Falei com sono, intuitivo. E como viver é estar distraído, sobrevivi a frase em mim mesmo. O futuro seria uma incrível e entediada perda de tempo.

Então escolhi a vingança e, secretamente, levantei-me contra isso. Estou, em plena hora de atividade, semi-morto, fazendo o único e mortal esforço de coordenar os dedos de forma caótica para que a coisa a minha frente faça algum sentido. Mas há um desafio. Entendem o desafio?

O texto não pode, em nenhuma instância, de jeito nenhum, demonstrar qualquer tipo de movimento. Tenho que fazer com que vocês imaginem um homem bobo, de óculos, suando, cabelos perfeitamente penteados, de camisa social branca, gravata preto de listras diagonais bege claro e vermelha, mascando um chiclete velho, fraco, feio e desinteressante com o olhar perdido no ventilador de teto, com o olhar fixo nos peitos da secretária loira e incalcançável, com o olhar compenetrado no computador que não diz nada e com a cabeça lá fora, tão externa que pensa a pessoa que ele nunca será. Tudo isso num mais profundo e aterrador silêncio. Mais que isso, na mais completa e adjetivada imobilidade.

São 15:25. Sou mulher. Tudo que me envolve tem uma dinâmica sexual que incomoda. Acaba a paz. Vem um e me beija por trás. Quer fazer charme, aproveitar qualquer brecha. Quer me comer. Tenho nojo, dou uma cortada, volto a ter pau.

E pifo. Perdermos muito tempo por nada.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

AUTO-RETRATO (conto grande)

I

Saberia nas próximas horas o que saber? Olharia a si do mesmo jeito e na mesma relação de estranhamento?
Havia poucos minutos estava na casa dela. Tinham ido ao cinema, comido qualquer coisa. Sem mais nada a dizer após três meses de apresentações, resolveram falar verdadeiramente de si. Foi então travada uma batalha antes de um diálogo, uma catarse, antes de lembrança. Se fizeram as primeiras e agudas críticas. Ele não disse uma palavra.
Já no carro dela, resolveram olhar o caminho a frente, os sinais, os pedestres, as próprias mãos. Não nasceram um para o outro.
Despediram-se, na casa dela, com um beijo. Procuraram o rosto, de raiva, desafio ou desconfiança, mas a força do hábito e a paixão por hábito remanescente, impulsionaram-lhes as bocas à frente.

Mal esquecia o copo d’água no filtro, o telefone lhe diz que está com saudades e que irá ver a irmã. Chegará um pouco tarde, mas mesmo assim ligará. Liga pra dizer que chegou bem, o bairro da sua irmã é perigoso. Perigosos são os homens que falam o que aprendem, uma combinação infinita de palavras e sentidos que filtram na alma, antes duma barreira à liberdade. Em três minutos, as promessas de mágoas e despedidas se arrojaram num turbilhão de sentimentos tão mais anêmicos como o carinho e a compreensão.

Por medo disse a si que a amava. Vá lá se saber o que o medo tem a ver com amor. Quando o homem entrega-se a algo, vira esse algo. Nunca se viu um que virasse amor. E então nasceremos para evitar, esperar, desconfiar, assegurar e verbalizar. Para não sair o ato por aí a corroer as vidas.

Na lógica do tempo foi deitando. Acendeu as luzes, teve medo das coisas, apagou as luzes, teve mais medo ainda das coisas quando não as via. Resolveu esquecer de ter medo e saiu.
Deixou a porta meio aberta, a luz da entrada acesa e virou como se a casa lhe espiasse. Considerava pouco sua, mais dela mesmo a casa seria.
Assim como as coisas em sua vida. Mais da vida tudo seria. A profissão era ela mesmo que exercia. Ficara famoso por obras que não precisaram dele para nascer e nem a ele consultaram quando foram amadurecendo.
Tornava-se um refém da vida.

Era como as palavras que se cospem da boca em fuga. São vinganças do significado que lhe cabem. Sou uma cadeira, nada mais posso ser. Um pente, um escaravelho, ladainha, porra, nada, tudo, sou um verbo e não ajo. Vingativo consigo mesmo Ele era como um verbo-palavra, cuspido dos próprios passos.

Não quis pegar o carro se carro tivesse. Se estivesse com raiva, raiva teria e foi se farsando até chegar numa ruela, como toda, escura, vadia, suspeita e ponto final de sentimentos confusos. Como se todo caos fosse dar em um pequeno espaço, onde perderia espaço para ser caos. Somos homens grandes, nossa alma não se mede.
Quando viu era um homem rude, bêbado. Soerguia a puta aos gritos e dela foi se renascendo. Dela viu-se um misto de pavor e ganância, cansaço e nojo, sem o cheiro do início do dia, sem os sonhos do início do dia e do momento que entrou como um homem distinto, leve.
Mulheres sempre amaram seu sujeito melancólico e desesperançado. Olhava a meio-olhar e sempre se detinha em um ponto inesperado dos corpos delas. Ria com os olhos e voltava a se consolar de tudo. Era batata.
Pedira uma água, com gelo e limão. Pediu licença para sentar, licença para falar. A puta se elegantou com os galanteios escondidos. Por muitos minutos se sentiu desejada, conquistada, cara.
Pedira um uísque, sem mais nem menos. Vai se saber o que se dá nessa hora.


II

Escondeu o choro porque a família que lhe cabia não lhe cabia não. O pai era um astuto, enorme, bonachão mas preguiçoso. O irmão era de uma simpatia arrogante, mais jeitoso que bonito, mas posudo que forte, um egocêntrico generoso, compartilhava-se a si aos outros. A mãe não sossegava, não lhe olhava, não lhe amava, nem se percebia. Cuidava a mãe do pai, porque na vida não lhe restava outro ofício. O filho, um pai em potencial, preparava ela para uma outra mulher. Assim garantia a perpetuação de si mesma numa mão mais jovem.

Começara há dez dias a preparação da festa. Sem choro nem vela mas com um alegria e uma esperança de comover. Seria um dia especial, que não sairia da memória, manchete nos jornais, falado à boca miúda, nas galerias, no elevador, viraria a tradição de uma vez só e ecoaria em si mesmo até que ficasse velhinha ou não.

Não queria enrolar. Anunciaria sua decisão. Duvidava que causasse comoção maior que um filete de lágrima na mãe. O riozinho de choro desceria por educação, que às vezes é o chicote da dor ou da indiferença. Se enquadraria a mãe no cartaz de qualquer matriarca com mais de dois apartamentos grandes e luxuosos em Ipanema. Sem esparramar os braços gordos, nem gastar mais voz do que pra comandar um empregado. Daria adeus, abraçaria a filha friamente, com cuidado e viraria as costas para que ela mesma fosse o alvo das condolências.

Os homens de sua vidinha escrota gritariam, suariam, se chocariam. Era pra dar demonstração de força, por incrível que parecesse a ela. Eram homens. Que mulher poderia tomar aquela decisão sem o consentimento deles? Que pulso têm aqueles senhores? Onde estão os culhões perguntariam os outros? Não souberam segurar a menina, não lhe deram alternativa. Não foram duros para controlarem nem sensíveis pra se favorecerem.

Tomou uma ducha lenta pra dar tempo de pensar em tudo no último instante de calma que teria nessa vida, sabia ela. O corpo era perfeito, o namorado é que era cego. Mais possessivo que ciumento, mas vaidoso que orgulhoso, gostava mais do pai dela que dela. Almofadinha, trelelé, baitola, era a raiva ou ele. Escolheu a raiva. O fato é que se apaixonara. Mesmo que anemicamente. Numa daquelas noites que não tem nome, que você acorda não sei por quê, que você vai à praia, posto 08 ela gostava, que não liga pra nada, nem pra si. Enfim que va ià praia e não lembra como, que come muito e não sente gosto nem graça. Foi prum bar com não lembra quem e viu um rapaz bonito, forte, rindo à toa. Entre chopp e indiferença prevaleceram os dois e algum sentimento torpe e vazio apareceu. Deu no que deu.

Pensou sem compromisso nas unhas, nas unhas das outras garotas. Como estariam? Quem viria à festa? Teriam uma grande surpresa. Tristeza para umas, alegria para mais do que umas. Nunca tivera amigas. Nunca se sentira amiga de ninguém. Pensou pouco nisso e tratou de se sentir um pouco mais.

Acordou com uma dor de cabeça e um frio no estômago. Ninguém ligara. Três horas para aa festa e ninguém ligara. Nem tocaram na porta, nem pensaram em se aproximar. Havia dez dias só vivia para isso e necas de pitiriba. A mãe trancara-se num papo delirante com a amiga, uma tia chata, semi-gorda, semi-linda, semi-feliz, semi-casada. Bufava a vida anêmica. Assim era. Assim teve mais raiva.

III

Há muito tempo escrevo em partes. É como se colocasse as sílabas em gavetas, num quarto distante, e as impressões me pautam e eu não pautasse as emoções. Escrevo sobre um mendigo, uma filha morta, um homem ausente de si mesmo desesperado e em busca de si na própria ausência; a alternativa viável. Coloco no papel, na madeira, no ar, no meio do trânsito, na boca de outra pessoa que me fala a minha própria voz, menos em mim.

É porque eu conto histórias pra um adulto. E adulto não imagina, não cria, não se impressiona, não tem coragem. Adulto é um menino no medo, um menino que é pai, que não escuta o que diz. Esse homem pula páginas, muda o vilão, o mocinho, troca de livro e se ajoelha ao pé da própria cama, não apaga a luz e inventa que dorme, descansa.

E quando saio à rua tropeço em pedaços de vida. Ou imaginações sobre a vida. Cruzo com quem era, com quem gostaria de ser. Se traço o mesmo caminho, vez em quando dou de cara com dois destinos inventados brincando. Se os pensei despreocupados, ao jogar pra trás, expulsá-los de mim, obriguei-os a crescerem, se criarem e nem se aceno de longe ou rio exageradamente de suas peripécias dão-se ao mínimo de me reconhecer. Vou vendo que o que eu sou é muito menos do que existo.

-Me dá aqui esse peito!
- Dou não, nêgo.

Corri pra mulher feito diabo foge da cruz. Mas fugi pro lado contrário; fui. E naquele momento, que não foi de experimentação sexual, não fui num casebre no interior, não foi na Lapa, na década devinte, driblando ladrões, bêbados e os fantasmas. Naquele momento me reparti feito doido. Ela bateu pra cá, pra lá, não quis nada mas não saía da minha cara de cão. Parece q naquela balbúrdia corporal teve calma de sobra e me aceitou, por pena, vaidade, vai se saber o que se passa nessa hora.

Não foi em lugar nenhum, foi aqui, na cachola, onde tudo cresce, surge. De vez em quando vão embora, nunca voltam, batem na casa quando não espero, não deixo entrar, fazem vigília, chamam os outros, passeatas, protocolos, uma quizumba que zune os ouvidos, elegem presidente, aceitam ser governados, fazem guerra, brigas de poder, leis, tomam posse, criam gado e hortelã. Já nem lembram mais porque estão lá. Fico trancado, pago a eles pelo pão, pelo conserto da geladeira, pra vigiarem meu jardim e quando vejo não sou eu quem me navego. Dependo deles e eles se esquecem de como nasceram. Nada devem.

Vez em quando vem um com cara de triste, sei que é safado, mas também não sou nenhum troglodita, me pega numa sensibilidade que dá dó. Sou seduzido e quando vejo tô sem cama, costas dóem, sofá nunca mais, tô sem amor e sem cachorro. Me junto aos dos protestos, como da mesma canjica, fico inflamado, falo alto, reclamo minha própria criação. Sou mais poderoso porque falo de mim pra mim mesmo. Vem chegando gente, daqueles que se foram, mais passeatas, mais protocolos, me torno presidente, tombo a casa, fecho escolas, deliro como um general e sua bala de prata, vou falindo hospital por hospital, fome, peste, mortes e mortes. Ninguém se atreve a nascer nem a ficar. Assim construo uma casa, sozinho, na cidade vazia.

Arranjo um amor e um outro cachorro.

IV

Acordou e deu no pé. Estava atrasado pra fazer o que não sabia o que faria. Teve pressa por algum motivo. Se tivéssemos todos os motivos, não teríamos pressa. Não lembrou da puta, nem de ter deixado sua namorada em casa, do telefonema, do bairro da sua irmã. Sentiu gosto de uísque, boceta e sangue.

Tava sol com cheiro de chuva. Parecia que ia chover. Mas deu no pé e precisava ter com aquilo que sentia. Não sabia o que faria, mas faria, de algum modo.
Deixou a casa pra trás lhe espiando e, enquanto bufava pelas ruas rápidas, se dava conta de que não sabia viver. Disseram para ele que seria simples, é só existir e amar tudo o que fizesse. Mas era frígido. Se a vida lhe roçava, não dava arrepios maiores do que um meio-pêlo rijo. Nunca gozou dela.

Dobrou todas as esquinas possíveis. Comprou um cigarro. Se arrependeu ou gostou, comprou mais um, o mais forte. Queria morrer e viver o máximo, que é uma forma de vida. Lembrava da primeira vez que colocou nicotina pra dentro. Tinha doze anos, queria ser grande, apaixonado por uma menininha loira, que, por sua vez, era apaixonada por um garoto mais velho, também louro e ele ali, sem lenço nem documento nenhum. Tinha que fumar um.

Pensou em ligar pra alguém. Tinha que ser mulher. Precisava de uma mãe antes de tudo. Daquele seio macio, de um cheiro menos repugnante do que o próprio. Calma, na verdade.
Foi dar num restautante escondido. Com decorações modernas, boas. Por coincidência, viu que as mesas eram projetadas por ele.

Saiu rápido. Desenbestou rua adentro ou afora. Lembrou de alguém que poderia salvá-lo.

V

Alguém ligara finalmente. Chegou no telefone e estatelou com a voz. O frio da barriga não era à toa. Não pensou na mãe, no irmão, no namorado nem no pai. Uma única sílaba permitia-lhe o esquecimento, cortesia da casa.

Era um amigo. Antiga paixão não-concluída. Aquele pedaço de vida que fica no caminho atravancando os sentimentos. Disse que estava mal, pensava em se matar. Precisava de um ombro, mais que de si mesmo, precisava dela.

Era um pouco menos de três horas para a festa. Como tomaria a decisão agora? Teria que evitar a decisão de outra pessoa. Do único homem que amou verdadeiramente.

Conheceu-o na escola. No início não gostava. Marrento, desleixado, fumava, com apenas doze anos, vejam só. Na época começou um namorico com um homem mais velho. Mas um dia pegou de surpresa o garotinho guardando sua bicicleta. Alguns outros meninos chatos queriam quebrá-la. E ele enfrentou todos. Meu herói desde sempre. Precisava ser salvo.

Resolveu sair. Passou que nem uma bala pela sala. Não cumprimentou a mãe nem a amiga semi-vista.

VI

Há muito tempo escrevo às vezes. Que é pra dar tempo de entender o que se vem e o que não veio. Escrevo pra justificar a vida que não vivo. Por isso vivo às vezes, que é pra ter espaço de me preencher a mim mesmo. Quando dá tempo.

De vez em quando vem uma. Tem cara de louca. Está chovendo lá fora e aqui dentro. A sala de estar bóia. A televisão bóia. Eu me acostumo, facilita-me a vida as correntezas dos cômodos. Não preciso andar, movo-me sem escolher mover. Quando quero, afogo. E esqueço de tudo.

Tinha o vestido rasgado, jovem, feia, negra, antiga. Olhou na minha fuça. Não pediu licença. A primeira me chegou, como quem chega do nada. Nadou lentamente em direção a janela. Pousou. Perguntei quem era ela. Você, me respondeu. Brincadeira boba. Perguntei novamente. Não sou mais você, respondeu. Assumi quem era, pelo ego duvidado e quis saber o porquê.

- Essa é a minha casa quando estou nela. Você é um intruso quando estou nela?

VII

- Lembra daquele dia da bicicleta?
- Me bateram demais, mas eu fui forte.
- Eu te amo ainda.

O diálogo é sempre a parte mais difícil. É a hora em que o personagem vive como você e que tem dúvidas, medo, descobre-se, fala. Gostava ele de ver, ouvir e fazer. Protegeu a bicicleta da moça. E ela o amou. Com atos viveram até o momento.

- Por que?
- Estou tão mal quanto você, não tenho que dar respostas, preciso de um sim.
- Preciso de você.
- Você me salvou.

E o beijou, e o agarrou, nem escapar um mílimetro pra respirar nem sufocar. Deixou-o num meio-estado qualquer, assim como entre a morte e a vida, a dicotomia que importa. Tinham uma história longa de desencontros e covardia. Um dia caberá contar.
Ela não anunciaria mais nada. Não haveria o filete de lágrima da mãe. Odiou a família que não lhe merecia.

Olharam-se longamente. O suicídio de ambos fizeram-nos elogiar ainda mais o que sentiam. Foram felizes e entenderam isso.

VIII

Eu sou mais um intruso. Há muito tempo escrevo como um. A casa era dela. Assim mesmo, antiga e negra e molhada. Expulsei e lutei à toa por um território. Matei por nada. Agi por nada.
Por Isso fiz os dois se acharem e se amarem. Não haveria atos para haver outros. Foram a síntese, insconsciente ou quase, dos meus próprios dias. Porque aqui, onde tudo surge, na cachola, consigo existir porque vejo.

Salvei-o por ela e a ela por ele. Ainda hoje sinto as dores dos meninos. Ali lutei por algo válido. Ganhei uma bicicleta intacta, um amor e a vida, assim que o fiz encontrar. Sentar nas mesas projetadas por ele e por mim, que somos os mesmos intrusos, um do outro. Demos-nos as mãos. Tive que mudar de casa e fui pra ele.

Tive que voltar mais tarde com cara de triste. Seduzi a negra. Estava chovendo, abri a porta e ela perguntou algo estranho. Brincadeira boba. Pousou na janela. Perguntou novamente. Não ouvi.

- Me dá aqui esse peito!
- Dou não, nêgo.

Vai se saber o que se dá nessa hora.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Viajando nos Corredores

Vejo grandes chefes, poderes Andarem sozinhos Num corredor vazio Num corredor escuro Baixam a cabeça Devem pensar que ainda são crianças Devem andar como andavam quando crianças A barba não vale de nada As jóias não valem de nada Ali São O mesmo que qualquer um Não podem ordenar nada à solidão Porque ela é a forma mais secreta de desobediência

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Samba

O samba é da periferia. A periferia pode estar no centro. Pode estar no alto. Pode estar aqui. Não nasceu do desejo de liberdade, mas da liberdade adquirida. Veio como um evangelho (que no sentido original significa "boas novas") , uma carta cantada para parentes distantes, jogadas as mensagens nas estrelas pra dar em alguma África, ou para filhos futuros amarem o fato de ser livres. Foi cultivado no meio dos rituais da escravidão, aprendeu com o batuque dos orixás, ainda grilhados , vindos da Baixada Fluminense, com cheiro de café. Misturou a terra com o cimento, asfalto e fumaça. Antes de tudo, com os próprios sentimentos, alforriados para serem próprios. Nasceu de uma evolução, do próximo passo, e da condição, primeira do homem, de viver e ser feliz vivendo.

O samba é do homem. Está jogado no espaço. Os filhos futuros somos nós, seremos nós. Não é mais do morro, embora ainda seja embalado pela mãe. Não é mais escravo, por mais que ainda queiram. Sua grandeza não deixa, sua riqueza não deixa, sua rapidez não deixa.
Falem do samba, sem falar da pobreza. "Sem melodia ou palavras para não perder o valor". Pintem-no, sem pintá-lo de preto. Cantem o samba sem fingir que sabem. Saibam. Antes de tudo , ele é conhecimento. Ensina eternidade. Não é o que vocês pensam que ele seja.

Se não entenderem o que é isso, não verão que o segredo é ser feliz. Porque uma hora ele vem. Tristez tem fim. A alegria , eterna, é que é o "seu habitat natural".

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Ausência



Escolhi a prosa
Porque a poesia é curta
Como explicar a ausência
Num copo?

Faltamos em tudo na vida
E tudo se define pela falta
O que existe completamente
É o inexplicável
Precisamos da meia-bomba,
Da meia-luz
Nem da poesia
Nem da prosa
De alguma literatura analfabeta
Dialeto
Falha
Gravada nos muros
Repintados
Desconexos
Para lê-los,
O sono e a vertigem
Assim deciframos melhor
As coisas da vida

Escolher é errado
Porque a escolha é uma meia-escolha

Como explicar a ausência
Num corpo?