quarta-feira, abril 05, 2006

Favela prêt-à-porter

A favela é permanente. Falar dela é uma atividade sazonal. Quase uma moda. Cheia de tendências reais, na maioria das vezes sérias e de reflexos concretos na vida das pessoas. É preciso que haja tiro no asfalto, Falcões incomodando o Domingo nosso de cada dia, mortes nos bairros nobres, blitz falsas na Petit Europe da Zona Sul, cheiro de merda na sola dos sapatos. Aí vira tendência, como uma cor. Agora falaremos azul. Entenderemos, como ninguém, de azul.
No início elogiam os tecidos, as estampas, genializam o gênio, que não precisava disso. Sorriem pra fora e pra dentro. É uma descoberta feliz aprender como se costura, como se tecem as idéias e as combina com desenhos. Todos sabiam que a moda existia, mas passam a saber, na pele, que ela existe.

Os olhos se acostumam com o que é mostrado. Adquirem o mínimo conhecimento, pelo menos para realizar comparações, bem simplificadas, entre dois estilistas e criar metáforas bem-sacadas com a vida. “Dior já foi mais assim...ou assado”, “hahaa, ficou com cara de Versace!”. É como criança aprendendo a infinitude das combinações semânticas. Da ilusão do domínio sobre o que pouco aprendeu, a sensação de segurança e auto-estima elevada oferecidas pelo chão bem pisado. Olham para as próprias roupas e cegam-se diante do buraco que existe entre o que vestem, o que podem produzir pra vestir, e , principalmente, por não suportarem as escolhas da roupa para aquele dia. Perdem-se, tragicamente, na tarefa mais simples: a decisão.
Mas só vive quem mente. Só passa quem cola. Quem não rouba não cresce. Agora arrotam pitacos nas roupas dos outros e ficam à espera de um vacilo qualquer do estilista. Este, genializado no início, figura-se humanamente. Por ser incompreensível, foi tão estudado que passou a ser íntimo. E intimidade é uma merda. Todo mundo acha que é pai da criança. Mais; que é padrasto e pode bater no filho que não criou.

Sobre favela fala quem quer. Fala que não tem juízo. Principalmente quem já fala demais. Jornalistas criados no mais alto grau de elitismo, cercado e sombreado, desde sempre, pelas idéias sociocêntricas, criados pelo “big brother” burro do poder que culmina na vantagem cultural, geográfica, social, física, intelectual e moral. São pirralhos abusados que nasceram para perpetuar o abuso.

Vestiram a camisa da favela. Tecem comentários e análises sobre o que sabem dela. Costuram fios soltos e criam uma roupagem que acham que faz sentido. Reinventam a moda de falar sobre o assunto. Mas, infelizmente, não costuram.

Bravejam a violência urbana, mas esquecem-se que na maioria das favelas chega primeiro e de forma muito mais cruel. Analisam a violência urbana, mas não percebem que ela é mais que tiros e armas. Como falar de algo que não sofrem:: postulam teses e apontam os “erros” de quem realiza algo por alguém, coisas que nunca realizam , que conjecturam sempre à mesa do bar. Quase nunca nas ruas. Nunca depois do túnel ou perto da linha do trem. Repetem de forma invariavelmente ignorante, estigmas e preconceitos que cabem aos dois piores tipos de pensadores: os que falam, informam e formam sobre o que não conhecem e os que não pensam o próprio discurso. São esses dois, ao mesmo tempo.

São aqueles com cara de conteúdo na primeira fileira do desfile. A paisagem pobre. Os bobos da corte invertidos. Os palhaços na platéia. Os desprovidos de mãos, lápis e vontade concreta para desenhar uma roupa.

Bobagem minha: a "inteliggentsia" é fashion.