quarta-feira, janeiro 18, 2006

AUTO-RETRATO (conto grande)

I

Saberia nas próximas horas o que saber? Olharia a si do mesmo jeito e na mesma relação de estranhamento?
Havia poucos minutos estava na casa dela. Tinham ido ao cinema, comido qualquer coisa. Sem mais nada a dizer após três meses de apresentações, resolveram falar verdadeiramente de si. Foi então travada uma batalha antes de um diálogo, uma catarse, antes de lembrança. Se fizeram as primeiras e agudas críticas. Ele não disse uma palavra.
Já no carro dela, resolveram olhar o caminho a frente, os sinais, os pedestres, as próprias mãos. Não nasceram um para o outro.
Despediram-se, na casa dela, com um beijo. Procuraram o rosto, de raiva, desafio ou desconfiança, mas a força do hábito e a paixão por hábito remanescente, impulsionaram-lhes as bocas à frente.

Mal esquecia o copo d’água no filtro, o telefone lhe diz que está com saudades e que irá ver a irmã. Chegará um pouco tarde, mas mesmo assim ligará. Liga pra dizer que chegou bem, o bairro da sua irmã é perigoso. Perigosos são os homens que falam o que aprendem, uma combinação infinita de palavras e sentidos que filtram na alma, antes duma barreira à liberdade. Em três minutos, as promessas de mágoas e despedidas se arrojaram num turbilhão de sentimentos tão mais anêmicos como o carinho e a compreensão.

Por medo disse a si que a amava. Vá lá se saber o que o medo tem a ver com amor. Quando o homem entrega-se a algo, vira esse algo. Nunca se viu um que virasse amor. E então nasceremos para evitar, esperar, desconfiar, assegurar e verbalizar. Para não sair o ato por aí a corroer as vidas.

Na lógica do tempo foi deitando. Acendeu as luzes, teve medo das coisas, apagou as luzes, teve mais medo ainda das coisas quando não as via. Resolveu esquecer de ter medo e saiu.
Deixou a porta meio aberta, a luz da entrada acesa e virou como se a casa lhe espiasse. Considerava pouco sua, mais dela mesmo a casa seria.
Assim como as coisas em sua vida. Mais da vida tudo seria. A profissão era ela mesmo que exercia. Ficara famoso por obras que não precisaram dele para nascer e nem a ele consultaram quando foram amadurecendo.
Tornava-se um refém da vida.

Era como as palavras que se cospem da boca em fuga. São vinganças do significado que lhe cabem. Sou uma cadeira, nada mais posso ser. Um pente, um escaravelho, ladainha, porra, nada, tudo, sou um verbo e não ajo. Vingativo consigo mesmo Ele era como um verbo-palavra, cuspido dos próprios passos.

Não quis pegar o carro se carro tivesse. Se estivesse com raiva, raiva teria e foi se farsando até chegar numa ruela, como toda, escura, vadia, suspeita e ponto final de sentimentos confusos. Como se todo caos fosse dar em um pequeno espaço, onde perderia espaço para ser caos. Somos homens grandes, nossa alma não se mede.
Quando viu era um homem rude, bêbado. Soerguia a puta aos gritos e dela foi se renascendo. Dela viu-se um misto de pavor e ganância, cansaço e nojo, sem o cheiro do início do dia, sem os sonhos do início do dia e do momento que entrou como um homem distinto, leve.
Mulheres sempre amaram seu sujeito melancólico e desesperançado. Olhava a meio-olhar e sempre se detinha em um ponto inesperado dos corpos delas. Ria com os olhos e voltava a se consolar de tudo. Era batata.
Pedira uma água, com gelo e limão. Pediu licença para sentar, licença para falar. A puta se elegantou com os galanteios escondidos. Por muitos minutos se sentiu desejada, conquistada, cara.
Pedira um uísque, sem mais nem menos. Vai se saber o que se dá nessa hora.


II

Escondeu o choro porque a família que lhe cabia não lhe cabia não. O pai era um astuto, enorme, bonachão mas preguiçoso. O irmão era de uma simpatia arrogante, mais jeitoso que bonito, mas posudo que forte, um egocêntrico generoso, compartilhava-se a si aos outros. A mãe não sossegava, não lhe olhava, não lhe amava, nem se percebia. Cuidava a mãe do pai, porque na vida não lhe restava outro ofício. O filho, um pai em potencial, preparava ela para uma outra mulher. Assim garantia a perpetuação de si mesma numa mão mais jovem.

Começara há dez dias a preparação da festa. Sem choro nem vela mas com um alegria e uma esperança de comover. Seria um dia especial, que não sairia da memória, manchete nos jornais, falado à boca miúda, nas galerias, no elevador, viraria a tradição de uma vez só e ecoaria em si mesmo até que ficasse velhinha ou não.

Não queria enrolar. Anunciaria sua decisão. Duvidava que causasse comoção maior que um filete de lágrima na mãe. O riozinho de choro desceria por educação, que às vezes é o chicote da dor ou da indiferença. Se enquadraria a mãe no cartaz de qualquer matriarca com mais de dois apartamentos grandes e luxuosos em Ipanema. Sem esparramar os braços gordos, nem gastar mais voz do que pra comandar um empregado. Daria adeus, abraçaria a filha friamente, com cuidado e viraria as costas para que ela mesma fosse o alvo das condolências.

Os homens de sua vidinha escrota gritariam, suariam, se chocariam. Era pra dar demonstração de força, por incrível que parecesse a ela. Eram homens. Que mulher poderia tomar aquela decisão sem o consentimento deles? Que pulso têm aqueles senhores? Onde estão os culhões perguntariam os outros? Não souberam segurar a menina, não lhe deram alternativa. Não foram duros para controlarem nem sensíveis pra se favorecerem.

Tomou uma ducha lenta pra dar tempo de pensar em tudo no último instante de calma que teria nessa vida, sabia ela. O corpo era perfeito, o namorado é que era cego. Mais possessivo que ciumento, mas vaidoso que orgulhoso, gostava mais do pai dela que dela. Almofadinha, trelelé, baitola, era a raiva ou ele. Escolheu a raiva. O fato é que se apaixonara. Mesmo que anemicamente. Numa daquelas noites que não tem nome, que você acorda não sei por quê, que você vai à praia, posto 08 ela gostava, que não liga pra nada, nem pra si. Enfim que va ià praia e não lembra como, que come muito e não sente gosto nem graça. Foi prum bar com não lembra quem e viu um rapaz bonito, forte, rindo à toa. Entre chopp e indiferença prevaleceram os dois e algum sentimento torpe e vazio apareceu. Deu no que deu.

Pensou sem compromisso nas unhas, nas unhas das outras garotas. Como estariam? Quem viria à festa? Teriam uma grande surpresa. Tristeza para umas, alegria para mais do que umas. Nunca tivera amigas. Nunca se sentira amiga de ninguém. Pensou pouco nisso e tratou de se sentir um pouco mais.

Acordou com uma dor de cabeça e um frio no estômago. Ninguém ligara. Três horas para aa festa e ninguém ligara. Nem tocaram na porta, nem pensaram em se aproximar. Havia dez dias só vivia para isso e necas de pitiriba. A mãe trancara-se num papo delirante com a amiga, uma tia chata, semi-gorda, semi-linda, semi-feliz, semi-casada. Bufava a vida anêmica. Assim era. Assim teve mais raiva.

III

Há muito tempo escrevo em partes. É como se colocasse as sílabas em gavetas, num quarto distante, e as impressões me pautam e eu não pautasse as emoções. Escrevo sobre um mendigo, uma filha morta, um homem ausente de si mesmo desesperado e em busca de si na própria ausência; a alternativa viável. Coloco no papel, na madeira, no ar, no meio do trânsito, na boca de outra pessoa que me fala a minha própria voz, menos em mim.

É porque eu conto histórias pra um adulto. E adulto não imagina, não cria, não se impressiona, não tem coragem. Adulto é um menino no medo, um menino que é pai, que não escuta o que diz. Esse homem pula páginas, muda o vilão, o mocinho, troca de livro e se ajoelha ao pé da própria cama, não apaga a luz e inventa que dorme, descansa.

E quando saio à rua tropeço em pedaços de vida. Ou imaginações sobre a vida. Cruzo com quem era, com quem gostaria de ser. Se traço o mesmo caminho, vez em quando dou de cara com dois destinos inventados brincando. Se os pensei despreocupados, ao jogar pra trás, expulsá-los de mim, obriguei-os a crescerem, se criarem e nem se aceno de longe ou rio exageradamente de suas peripécias dão-se ao mínimo de me reconhecer. Vou vendo que o que eu sou é muito menos do que existo.

-Me dá aqui esse peito!
- Dou não, nêgo.

Corri pra mulher feito diabo foge da cruz. Mas fugi pro lado contrário; fui. E naquele momento, que não foi de experimentação sexual, não fui num casebre no interior, não foi na Lapa, na década devinte, driblando ladrões, bêbados e os fantasmas. Naquele momento me reparti feito doido. Ela bateu pra cá, pra lá, não quis nada mas não saía da minha cara de cão. Parece q naquela balbúrdia corporal teve calma de sobra e me aceitou, por pena, vaidade, vai se saber o que se passa nessa hora.

Não foi em lugar nenhum, foi aqui, na cachola, onde tudo cresce, surge. De vez em quando vão embora, nunca voltam, batem na casa quando não espero, não deixo entrar, fazem vigília, chamam os outros, passeatas, protocolos, uma quizumba que zune os ouvidos, elegem presidente, aceitam ser governados, fazem guerra, brigas de poder, leis, tomam posse, criam gado e hortelã. Já nem lembram mais porque estão lá. Fico trancado, pago a eles pelo pão, pelo conserto da geladeira, pra vigiarem meu jardim e quando vejo não sou eu quem me navego. Dependo deles e eles se esquecem de como nasceram. Nada devem.

Vez em quando vem um com cara de triste, sei que é safado, mas também não sou nenhum troglodita, me pega numa sensibilidade que dá dó. Sou seduzido e quando vejo tô sem cama, costas dóem, sofá nunca mais, tô sem amor e sem cachorro. Me junto aos dos protestos, como da mesma canjica, fico inflamado, falo alto, reclamo minha própria criação. Sou mais poderoso porque falo de mim pra mim mesmo. Vem chegando gente, daqueles que se foram, mais passeatas, mais protocolos, me torno presidente, tombo a casa, fecho escolas, deliro como um general e sua bala de prata, vou falindo hospital por hospital, fome, peste, mortes e mortes. Ninguém se atreve a nascer nem a ficar. Assim construo uma casa, sozinho, na cidade vazia.

Arranjo um amor e um outro cachorro.

IV

Acordou e deu no pé. Estava atrasado pra fazer o que não sabia o que faria. Teve pressa por algum motivo. Se tivéssemos todos os motivos, não teríamos pressa. Não lembrou da puta, nem de ter deixado sua namorada em casa, do telefonema, do bairro da sua irmã. Sentiu gosto de uísque, boceta e sangue.

Tava sol com cheiro de chuva. Parecia que ia chover. Mas deu no pé e precisava ter com aquilo que sentia. Não sabia o que faria, mas faria, de algum modo.
Deixou a casa pra trás lhe espiando e, enquanto bufava pelas ruas rápidas, se dava conta de que não sabia viver. Disseram para ele que seria simples, é só existir e amar tudo o que fizesse. Mas era frígido. Se a vida lhe roçava, não dava arrepios maiores do que um meio-pêlo rijo. Nunca gozou dela.

Dobrou todas as esquinas possíveis. Comprou um cigarro. Se arrependeu ou gostou, comprou mais um, o mais forte. Queria morrer e viver o máximo, que é uma forma de vida. Lembrava da primeira vez que colocou nicotina pra dentro. Tinha doze anos, queria ser grande, apaixonado por uma menininha loira, que, por sua vez, era apaixonada por um garoto mais velho, também louro e ele ali, sem lenço nem documento nenhum. Tinha que fumar um.

Pensou em ligar pra alguém. Tinha que ser mulher. Precisava de uma mãe antes de tudo. Daquele seio macio, de um cheiro menos repugnante do que o próprio. Calma, na verdade.
Foi dar num restautante escondido. Com decorações modernas, boas. Por coincidência, viu que as mesas eram projetadas por ele.

Saiu rápido. Desenbestou rua adentro ou afora. Lembrou de alguém que poderia salvá-lo.

V

Alguém ligara finalmente. Chegou no telefone e estatelou com a voz. O frio da barriga não era à toa. Não pensou na mãe, no irmão, no namorado nem no pai. Uma única sílaba permitia-lhe o esquecimento, cortesia da casa.

Era um amigo. Antiga paixão não-concluída. Aquele pedaço de vida que fica no caminho atravancando os sentimentos. Disse que estava mal, pensava em se matar. Precisava de um ombro, mais que de si mesmo, precisava dela.

Era um pouco menos de três horas para a festa. Como tomaria a decisão agora? Teria que evitar a decisão de outra pessoa. Do único homem que amou verdadeiramente.

Conheceu-o na escola. No início não gostava. Marrento, desleixado, fumava, com apenas doze anos, vejam só. Na época começou um namorico com um homem mais velho. Mas um dia pegou de surpresa o garotinho guardando sua bicicleta. Alguns outros meninos chatos queriam quebrá-la. E ele enfrentou todos. Meu herói desde sempre. Precisava ser salvo.

Resolveu sair. Passou que nem uma bala pela sala. Não cumprimentou a mãe nem a amiga semi-vista.

VI

Há muito tempo escrevo às vezes. Que é pra dar tempo de entender o que se vem e o que não veio. Escrevo pra justificar a vida que não vivo. Por isso vivo às vezes, que é pra ter espaço de me preencher a mim mesmo. Quando dá tempo.

De vez em quando vem uma. Tem cara de louca. Está chovendo lá fora e aqui dentro. A sala de estar bóia. A televisão bóia. Eu me acostumo, facilita-me a vida as correntezas dos cômodos. Não preciso andar, movo-me sem escolher mover. Quando quero, afogo. E esqueço de tudo.

Tinha o vestido rasgado, jovem, feia, negra, antiga. Olhou na minha fuça. Não pediu licença. A primeira me chegou, como quem chega do nada. Nadou lentamente em direção a janela. Pousou. Perguntei quem era ela. Você, me respondeu. Brincadeira boba. Perguntei novamente. Não sou mais você, respondeu. Assumi quem era, pelo ego duvidado e quis saber o porquê.

- Essa é a minha casa quando estou nela. Você é um intruso quando estou nela?

VII

- Lembra daquele dia da bicicleta?
- Me bateram demais, mas eu fui forte.
- Eu te amo ainda.

O diálogo é sempre a parte mais difícil. É a hora em que o personagem vive como você e que tem dúvidas, medo, descobre-se, fala. Gostava ele de ver, ouvir e fazer. Protegeu a bicicleta da moça. E ela o amou. Com atos viveram até o momento.

- Por que?
- Estou tão mal quanto você, não tenho que dar respostas, preciso de um sim.
- Preciso de você.
- Você me salvou.

E o beijou, e o agarrou, nem escapar um mílimetro pra respirar nem sufocar. Deixou-o num meio-estado qualquer, assim como entre a morte e a vida, a dicotomia que importa. Tinham uma história longa de desencontros e covardia. Um dia caberá contar.
Ela não anunciaria mais nada. Não haveria o filete de lágrima da mãe. Odiou a família que não lhe merecia.

Olharam-se longamente. O suicídio de ambos fizeram-nos elogiar ainda mais o que sentiam. Foram felizes e entenderam isso.

VIII

Eu sou mais um intruso. Há muito tempo escrevo como um. A casa era dela. Assim mesmo, antiga e negra e molhada. Expulsei e lutei à toa por um território. Matei por nada. Agi por nada.
Por Isso fiz os dois se acharem e se amarem. Não haveria atos para haver outros. Foram a síntese, insconsciente ou quase, dos meus próprios dias. Porque aqui, onde tudo surge, na cachola, consigo existir porque vejo.

Salvei-o por ela e a ela por ele. Ainda hoje sinto as dores dos meninos. Ali lutei por algo válido. Ganhei uma bicicleta intacta, um amor e a vida, assim que o fiz encontrar. Sentar nas mesas projetadas por ele e por mim, que somos os mesmos intrusos, um do outro. Demos-nos as mãos. Tive que mudar de casa e fui pra ele.

Tive que voltar mais tarde com cara de triste. Seduzi a negra. Estava chovendo, abri a porta e ela perguntou algo estranho. Brincadeira boba. Pousou na janela. Perguntou novamente. Não ouvi.

- Me dá aqui esse peito!
- Dou não, nêgo.

Vai se saber o que se dá nessa hora.