quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Primeiro Crime

Joguei água na cara pra ter certeza de estar desperto. Não poderia falhar. A faca mata bem, mas precisa ser bem enfiada. Um golpe na barriga, rodar, apoiar o corpo com a outra mão para que não saia do esquadro do ato. Tirei a camisa social jeans que usava abotoada. Fiquei apenas com a preta que estava por baixo, caso espirrasse sangue. Ao sair colocaria novamente a blusa jeans. Sairia assobiando. Ouvi o barulho da descarga. Do zíper. Senti o cheiro doce de um perfume caro feito pra se fuder com uma mulher. Ele não me conhecia. Aliás não conhecia ninguém que não fosse de seu interesse. E, mesmo que tivesse me visto, sou um homem comum, não tenho dinheiro nem poder. Até agora. Olhei-o de lado. Teria que ser rápido. Não tranquei a porta. Era um café movimentado, mas de amenidades. Vinham, iam, liam, sorriam e iam embora. Passadas curtas no banheiro. Os atendentes eram discretos e não marcavam o rosto de ninguém. Sempre frequentei ali. Não desconfiariam. Não tramei nada. Entendi a consequencia de ver o babaca frequentar o mesmo lugar que eu. Não aproveitar o fato seria estupidez. Segurei-o pelo ombro. Sem barulho . Nada maior que o burburinho da fofoca e das fumaças das chaleiras. Pensei até que era um ótimo lugar pra morrer e pra matar. Fineza pura. Balbuciei qualquer coisa. Mirei a porta, senti até um pequeno nervoso. Mas pensei no serviço que prestava. Menos um escroto no mundo. Mais dinheiro repartido. Vai, nessas horas você imagina qualquer merda. Dei no estômago, rodei. Olhei novamente pra porta já arrastando-o para um dos reservados. Pelo impulso cravei mais um no coração, virei-o e o definitivo nas costas. Não precisava de tanto, perdi tempo. Guardei-o, deixei as pernas em simetria para dar a impressão de que cagava. Lavei as mãos, pedi uma refeição. Quiche de queijo e cebola com salada mais um mate com limão. Comi com calma. Mulher sempre demora. O garçom indicou a mesa em que o homem estava. Ela viu metade de uma torta comida. Disseram que estava no banheiro. Devia estar passando mal. Pedi a conta e a vi sorridente, ajeitando os cabelos no espelhinho do estojo de maquiagem.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

RELATO DE UM ASSASSÍNIO (Série de Assassinatos - I)

Não agüento mais esse mundinho de hoje. Sou um peixe fora d’água. De qualquer água. Se pudesse resumir a sociedade brasileira, do início do século XXI, em uma só palavra, diria: desencaixe. Nada combina, é um desencontro permanente. Mesmo com gente de uma mesma tribo, de um mesmo jeito, da mesma rua, comendo as mesmas mulheres, bebendo as mesmas cervejas, nos mesmos bares, com os mesmos erros, nas mesmas horas. Parece que nada se conecta a nada. O Brasil é uma pocilga cheio de gente boa, que, pela bondade, não modifica nada a tempo hábil e , pelo mesmo sentimento, se enche de culpa e cansaço. Temos as celebridades, que aparecem. Nada sabem, nada entendem, nada modificam. Ajudam no quadro desgraçado de tudo permanecer como está. Não inspiram. Deviam inspirar, como ídolos passados. Mas tudo que fazem é estabelecer a programação do dia. Temos a elite da grana. Que compra. Fornecedora do tipo mais feroz de ilusão: o consumo. E o consumo é estúpido, imobiliza. Essa gentinha é asquerosa, mas ignorante. Dos que eu tenho raiva estão aqui, do meu lado nesse Café. Um dos que mais odeio gosta de mate puro e forte com coca. Diz que é pra se manter acordado, é um jornalista ocupado, não tem tempo, mas precisa fazê-lo girar com as notícias, dar a impressão de que tudo passa rápido. Precisa enganar. São eles que me causam azia, queimação e má digestão. São os senhores da mídia, da imagem, os que produzem e reproduzem, que se acham com o reinado na barriga e fazem da informação penduricalho do ego. Jornalistas, escritores, pintores, poetas e compositores que se vestem para significar, que significam para vestir, para fazer parte e desfazer ao mesmo tempo. Os que são blazé até no perfume. Intocáveis, intangíveis e tão merdinhas quanto qualquer um. Vou falar mais deles a medida em que os for matando. Porque é por isso que estou aqui. São quatro horas da tarde, é Leblon, é mormaço, já tomei duas águas sem gás e uma neosaldina. Vou esperá-lo ir ao banheiro. Está esperando uma fonte, uma mulherzinha que deve estar comendo e que trabalha em alguma assessoria de alguns artistas famosos. Ele é editor da parte de cultura do maior jornal do Rio. Fala manso, é arrogante, já mandou muito conhecido meu embora só por não participarem da sua rodinha de maconha, cachaça em Santa Teresa, reuniões regadas a muita mutreta nos grandes apês de São Conrado e fudeções interessadas nos motéis sujos do centro. É conhecido, grande no meio, cresceu na base da delação e do puxa-saquismo. Além disso eu acho que é viado e ainda não sabe. Está com um arzinho infame, caga para a realidade brasileira e só quer saber de status, que vem junto com grana, que vem junto com ele. Vou precisar eliminar uma peça para que esse quebra-cabeça faça sentido para o mundo. É uma missão. Está na hora de alguma coisa encaixar na cabeça das pessoas.