sexta-feira, maio 04, 2007

Dona Glória

Dona Glória me olhou sem nenhuma surpresa. Continuou descascando alho. Eu estava no cumprimento de um ofício. Buscando personagens para uma matéria qualquer. Não importa. Saí da redação, dei trinta passos e entrei em sua casa, que era seu local de trabalho. O fato de ter feito da sala uma fonte de renda não me fez ficar menos tenso ao entrar. Tinha televisão ligada na novela, tinha fotos de família, mobílias velhas com objetos pessoais. Era um espaço privado e íntimo. No entanto o incômodo estava do meu lado, não do dela. Dona Glória ficou impassível diante das perguntas consecutivas e da figura completamente desconhecida. Respondeu a tudo com uma tranqüilidade acolhedora, ofereceu água, café, refrigerante (“porque aqui eu vendia cerveja, mas dava muita briga entre esses homens”) e um bolo. Não aceitei e continuei o questionário. Questionário imbecil.
Eu estava em um momento confuso e triste da vida. Trabalhando demais, raivando-me demais, vendo meus amigos de menos, respirando menos ainda. Sentia culpa do que não sabia e , contraditoriamente, me fazia de coitado diante da vida. No percorrer dos trinta passos fui pensando em tudo isso, enchendo-me de importâncias e peso. Entrei afobado. Duro.
Escrevo isso para agradecer Dona Glória por aqueles trinta minutos de papo. Ela, com uma sabedoria natural, transformou a entrevista em conversa, a sede de informação por troca de boa energia. A urgência em paz. Não precisou clamar a nada por isso. Apenas me aceitou desde o primeiro momento em que entrei em sua residência. Sem julgamentos nem desconfiança. Contou uma história linda de superação e vitórias. Embora ainda cozinhasse pra viver e tirasse no máximo uns 600 reais por mês, tinha altivez diante da posse. Desapego. “Já fui de tudo. Trabalhei com tudo. Agora estou bem. Não preciso me matar pra viver. Não preciso de muito pra me sentir bem. Os meninos vêm aqui e lancham. No sábado fazemos um churrasquinho”. Entendi, como nunca, que não era a inércia da pobreza, falta de ambição, conformismo. Era o elogio do humano e não do ego. Era uma lição pra mim. Cura.
Dona Glória me levou até a porta e viu as crianças correndo da barata. “Tia Glória, mata a barata!”. E eu a vi flutuando acima das pernas inchadas e anos de sacrifício. Ria alto.
Voltei pra redação, botei as coisas na bolsa e decidi seguir os conselhos calados e decisivos daquela estupenda mulher.
Sem matéria, importâncias e sem peso.