quinta-feira, dezembro 01, 2005

LEBLON

Não gosto de situar lugares. Prefiro decupar cheiros e luzes. Mas era Leblon. O bairro, como uma estação do ano. Anunciavam flores pelas ruas e maresias no ar diferente. Que vinha do mar, mesmo sem vê-lo. Estava num ônibus, que zombava da simetria da vida ali, naquela hora, naquela passagem. Era grande, rosnava, cheio de gentes, a maioria escura. Estava sábado. O dia, como uma temperatura. Descombinava, humilhava-se, um bobão gigante, desengonçado e feio. Mostrava a língua. Criança mal-educada na fila. E eu xingava a todos pelos meus olhos quebrados.
É que eu não pertencia àquele lugar. Fazia questão de despertencer os outros ao meu lado; insones, caducos e mortos de tanto trabalho. Éramos uma afronta, um tipo de revolta e nossa própria polícia cheios de gás lacrimogêneo. Éramos gritos e gritos sobre os gritos que tentam abafar-se a si mesmos. Por isso pendíamos as cabeças pra lá e pra cá, praqui e acolá, uma freada sim, um calombo sim, um desembarque, apito, curva, reta, sono, espirro, mulheres, mar (entre prédios e prédios). Como soldados marcados , presos e cheios de liberdade.


Sentia dor. Pela dor de não tocar os homens do Leblon mesmo sendo um homem. Estacavam no peito, como ferimento mortal e bandeira, um Brasil que não existe. Nem aqui, nem na China. Aquilo tudo era delírio, uma encenação cínica feita pra ninguém. Nossos tiros sangravam fantasmas. Bem limpos, vestidos, felizes, livros, cafés, bolinhos to die for, o Globo, pranchas, mechas, postes de isopor, andares lentos e obras definitivas cruzando-se e saudando-se. A sujeira que chegava no ônibus chegava, calava e passava. Em direção a própria sujeira. Circular.

Restava pouco tempo. Em breve desceria. Precisava escolher em fundir-me covardemente ou cagar literalmente e literariamente na cabeça daquela Europa perversa. Suava frio, vontade de peidar, as sobrancelhas bagunçavam, a bunda amassada, caminhei.

Passei pelas cervejas, pela boemia histórica e inútil. Pelas lojas caras, quase todas. Por um entregador velho. Entrei na livraria. Era o centro difusor daquilo tudo.

- Estou procurando um livro.

Óbvio. Falei meio nervoso, olhava a grandeza do lugar. Olha como estou situando tudo, muita gente sem olhar e olhando, cheiro de madeira e café, como uma pessoa.

- Qual?
Estanquei. Negro, mal-arrumado e com cheiro de mofo no black-power. Todos estancaram, como se tivesse cortado os pulsos no meio dos vampiros. Atraí. Aproximavam, esticando os ouvidos e os cérebros. Era a hora da revolta. Num Leblon sábado à tarde, como uma alma.


- Um sobre favela.

Não tinha lá. Mas comprei outro de mesmo assunto. Vinguei. Mostrei o veneno no seio da cura. Salvei-os também. Agora se precaviam. Guardavam mais no canto, escondiam como mito, oravam pra esquecer. Existia um ônibus revoltoso na livraria. Só que não apitava, nem balançava. E ao sair dali, cortava ao meio toda aquela maresia. Era arma e escudo de uma guerra invisível.

Fui pra longe dali. Prum bairro mais pobre. Começava a despertencer as coisas.

A inquietude, como uma vida.