sexta-feira, setembro 16, 2005

PÉROLA NEGRA


As ladeiras, naturalmente, formam um labirinto. São descidas, subidas, desvios na direção oposta à caminhada, casas aleatórias que se transformam em sinalização, barreira ou referências. Acidentes da construção humana. O caminho, às 05 horas, ainda sofre com a escuridão e com a desconfiança dos traficantes da vigília, sempre mais atentos ao amanhecer, hora onde a emboscada policial se agiganta no descuido das armas de quem não precisa engatilhá-las e na fraca mas oportuna iluminação do sol. Nada que intimide Dona Olga. Participou da construção de alguns becos, namorou em outros, ajudou a criar os meninos com fuzis de verdade. Lá foi e é feliz.

- Bom Dia, Dona Olga.
- A benção, Tia. Bom trabalho.
- Deus te abençoe, meu filho.

Dona Olga é uma imigrante do norte. Junto da mala , há mais de 50 anos, bastante coragem e a incerteza de sobrevivência. Não tendo onde morar, se instalou em um lugar bom, deserto mas com jeitinho caseiro. Um morro onde a modernidade havia esquecido. Uma pequena roça, simples, que de tão íntima apelidaram Rocinha. Uma menina q tratavam com carinho, que deslumbrava com suas cachoeiras e a praia toda a seus pés. Uma menina que foi sendo esquecida, maltratada. Fumou, cheirou, se tornou violenta. Cresceu, se perdeu nos próprios demônios. Se tornou de todos, de tantos. Uma babel construída para se chegar a nada.
Dona Olga veria essa menina morrer violenta e duplamente. Não perceberia.

Aos poucos o silencio do interior do morro da lugar a pulsante despertar da cidade. As curvas do beco vão dando em lugares cada vez maiores e arejados. A vala que a acompanha se torna escassa, filete quase limpo de água. O cheiro é bom, de fumaça e de mar. Sem perceber, Dona Olga abandona as casas de alvenaria, ruborizadas pelo sol incidente. Vai pensando, na vida, nos sete filhos, no neto que está para se formar e na filha que perdeu. Com a mesma desenvoltura cumprimenta um policial militar, que não responde ao aceno, olhando-a de cima a baixo. Alguns rojões de fogos de artificio saúdam a chegada do inimigo. Voam luzes diante da cabeça de Dona Olga e de 200 mil habitantes da Rocinha, diminuídos frente a imponência do que é chamada a maior favela da América Latina.

- Cheguei, Madame.

É empregada da casa há quase 20 anos. Prepara o café, acorda as crianças, brinca com o patrão. Espera sua hora de ficar sozinha. Arruma tudo, cozinha, com uma rapidez que nega seus 65 anos de idade e vê a sua novelinha. No fim da tarde volta para Rocinha. Escolhe um caminho que não faz normalmente. Vê, um pouco acima na ladeira, sua filha Solange, ex-traficante, morta com tiros de fuzis, jogada a jacarés criados no morro, andando, sorrindo. Se aproxima rapidamente, torna uma esquina, corta caminho em outro beco e toca a moça.

O engano só se dissipou de sua cabeça quando chega em casa e cozinha para a família. Dona Olga não sabe muito da vida das outras milhares de mães que ficaram sem desamparadas nos últimos 20 anos de guerra entre policiais e traficantes no morro. Olhando os netos na porta de casa, lembrava de sua outra filha, a mais velha, brincando pela Rocinha cheia de mato, subindo em jaqueiras e laranjeiras, chegando molhada de cachoeira e mar. Não temia que usasse drogas, não havia tantas. Nada de ruim era tanto como hoje

- Essas crianças , tudo cheira! Tudo fica grávida!

A ordem é para todos se recolherem no cair da noite. A ameaça de invasão de um outro traficante deixa os locais com um misto de ódio impensado e excitação. A polícia está escondida, os "vermes" podem aproveitar a batalha entre os bandidos para tomarem o poder no morro. Dona Olga não conhecia o ambulante morto com uma bala perdida. Saiu em todos os jornais. A Rocinha é sempre notícia, é tão grande, tão falada, dá orgulho, tão bom de se viver. E no labirinto das ladeiras, confunde suas próprias emoções.

- Olha, tia, a Pérola Negra – dizia, orgulhoso, um traficante exibindo o fuzil atravessado no ombro.

Solange era negra, linda. No meio da bandidagem se destacava, era esperta, ousada, encantava. O corpo bem torneado e o rosto fino não afinavam com a violência, a brutalidade e o perigo que rondavam sua vida. Era uma pedra preciosa no valão.

Dona Olga desligou a tevê, lavou a louça e foi para cama. Antes de apagar a luz, lembrou do traficante, amigo de sua filha morta.

- Olha, tia, a Pérola Negra.

Não lembrou de Solange. Virou o rosto para o lado da parede, suspirou o cansaço de um dia e achou graça.